Triste, louca ou bruxa | Do feminino à histeria
- aleh
- 1 de out.
- 5 min de leitura

Loucas, descontroladas, eufóricas, mentirosas, farsantes, bruxas, lésbicas: histéricas.
A história da mulher ao longo dos tempos vem sendo escrita pelas mãos do patriarcado. Dependendo da época e do contexto social, político e econômico, a forma de manipulação e controle de seus corpos, mentes e comportamentos se diferenciava. Quando não seguiam aos padrões sociais, fugiam das normas e ameaçavam a ordem e a moral, não correspondendo às expectativas tradicionais da sociedade, as mulheres eram sujeitas à terrível força de dominação que se lançava sobre elas.
Na idade média, a caça às bruxas foi uma perseguição às mulheres independentes, sendo esta independência feminina algo incompreensível à sociedade. Elas moravam no campo e cultivavam antigas tradições (curandeiras, parteiras) passadas de mãe pra filha, como o preparo de remédios caseiros em caldeirões. Outro aspecto considerado era o físico. Se a mulher tivesse algum tipo de deformação, verruga, marcas na pele, também era um sinal do demônio manifestado em seu corpo, de acordo com o Vaticano na época.
Afim de purificar e limpar os pecados dessas pobres criaturas demoníacas, essas mulheres eram capturadas, humilhadas e torturadas. Algumas delas confessavam práticas macabras que nunca haviam cometido, para terem uma morte mais rápida pela forca. As que não confessavam, também não saíam vivas, tendo uma morte mais lenta e dolorosa, pela fogueira.
Esse extermínio ocorria em praça pública, um ato coercitivo que servia de exemplo para amedrontar, reprimir outras mulheres, suscitando também no imaginário popular as lendas satânicas sobre as bruxas.
Não podemos deixar de mencionar que os homens também sofreram com essa caça às bruxas, embora a maioria dos acusados de bruxaria fosse composta por mulheres.
As mulheres eram consideradas mais vulneráveis e seduzíveis pelas forças do mal do que os homens, detentores da razão. Essa vulnerabilidade, foi por muito tempo, justificada pela sua biologia, por terem um útero.
Voltando à Grécia Antiga, Hipócrates e Platão, acreditavam que o útero tinha uma influência direta sobre a saúde mental da mulher. Ele era considerado um animal, o qual a mulher não tinha controle nenhum, podendo vagar pelo seu corpo, passar pelos seus órgãos, se alojar nos rins, fígado, costas, garganta e até olhos. Era o chamado “útero errante”. Além de se mover pelo interior do corpo, esse útero também tinha uma vida própria, ficava irritado e entediado e precisava produzir frutos para se sentir útil.
Segundo Platão, em um dos seus Diálogos, intitulado Timeu:
“[O útero] fecha a passagem do ar, impede a respiração, coloca o corpo em extremos perigos e engendra mil enfermidades; e isso só é remediado quando o homem e a mulher, reunidos pelo desejo e pelo amor, fazem com que nasça um fruto, que é colhido como se colhe das árvores.”
Na época, não era comum o estudo da anatomia com a dissecação dos corpos, sendo assim, só existiam suposições fisiológicas e anatômicas do corpo humano.
Com o desenvolvimento da medicina, constatou-se que o útero não perambulava, não se entediava, e não era um animal com vida própria, porém, o estigma já havia se instaurado e ganhado nome: Histeria, do grego “hystéra”, que significa “útero”.
Como mencionado anteriormente, o controle dos corpos das mulheres já ocorria durante séculos, sendo manipulado de acordo com as demandas e os contextos político e socioeconômico. Com as guerras internacionais e a revolução industrial, houve um aumento na produtividade e alterações nos padrões de consumo da sociedade, sustentados pela mão de obra e exploração dos trabalhadores. O controle de nascimentos e a saúde das crianças era fundamental para manter o funcionamento desse novo Estado. Nesse contexto, a intervenção sobre o corpo das mulheres também mudou.
Como nos conta a filósofa Silvia Federici; “se fez necessário habilitar as mulheres ao trabalho e treiná-las para serem boas reprodutoras de humanos e ainda aproveitar sua força para a criação dos filhos. Em uma nova economia social, já não era possível dar-se ao luxo de exterminar seus corpos, como a queima na fogueira. Se exigia então o treinamento e um uso controlado deles.”
A Revolução Industrial inseriu as mulheres no mercado de trabalho, não visando a independência do gênero feminino (crianças também trabalhavam), mas porque era uma mão de obra de menor custo. Com os maridos na guerra elas precisavam sustentar suas famílias, ou devido aos baixos salários masculinos, insuficientes para garantir a subsistência, elas precisavam complementar a renda familiar.
Considerando esse novo modelo econômico e a entrada das mulheres na classe operária, a discriminação de gênero continuava, as mulheres eram vistas como submissas, por não terem um sindicato trabalhista organizado e pouca era a adesão feminina às greves. Os salários eram baixos e menores que o dos homens, alta carga horária, ambientes insalubres e muitos assédios.
Além de trabalharem nas fábricas, ainda tinham que voltar para casa e continuar o trabalho doméstico, sendo altamente sobrecarregadas com essas demandas.
Mesmo assim, a participação delas no processo industrial abriu precedentes para a equiparação de direitos entre homens e mulheres nas esferas familiar, econômica e também relativa a direitos sociais, como, por exemplo, a conquista do direito ao voto. Paradoxalmente a esse movimento feminino, intensificava-se a estratificação social, reforçada por uma classe burguesa fundada por valores morais modernos (família, trabalho, propriedade e comércio), que implementava práticas de urbanização, higienização e/ou eugenia. Essas práticas, pretendiam basicamente, adestrar os trabalhadores para serem mais produtivos e afastá-los do convívio social, evitando aglomerações e fazendo com que os indivíduos sentissem a importância de permanecerem em seus lares. Isso era, na verdade, um deslocamento tático do público ao privado, um adestramento, deixando as cidades livres para usufruto das pessoas de “bem”.
Seguindo o processo de higienização, foram criadas instituições intituladas de “hospitais gerais”, um misto de hospital, asilo, pensão, prisão, orfanato e reformatório. Todos os excluídos da sociedade eram mantidos nessas instituições: moradores de rua, epilépticos, loucos, mulheres — todo tipo de comportamento oposto ao ideal de mulher burguesa, deveria ser afastado da convivência.
Com o tempo e à base de muito sofrimento, essas instituições foram se diferenciando entre: prisões, hospitais e orfanatos.
As mulheres continuavam a ser discriminadas pelos mais diversos motivos: tristeza, homossexualidade, vontade de estudar, ninfomania, recusa a casar ou ter filhos, mutismo, cegueira, etc. Essa diversidade era resumida à uma palavra: histeria. A ideia de que as mulheres eram mais susceptíveis à loucura devido ao seu ciclo reprodutivo, serviu para justificar diversas práticas opressivas e desigualdades de gênero.
Dentre essas práticas podemos citar o isolamento, manipulação dos órgãos genitais pelos médicos, eletrochoque, internação involuntária em hospitais psiquiátricos e até a histerectomia (remoção do útero). A recomendação médica para as mulheres em geral era: casamento com reprodução de filhos.
No final do século XIX, com a modernização das ciências médicas, que se começou a olhar a loucura como doença e com metodologias regulares, então, a histeria se tornou uma doença a ser tratada e descrita. A sua característica predominante era a inexistência de uma causa biológica, não sendo possível determinar a doença por meio de exames físicos. Percebeu-se que havia um padrão de comportamento no enfrentamento dos problemas, e que, segundo Freud, os sintomas eram um mecanismo de fuga e significação de situações sentidas e insuportáveis vivenciadas, geralmente no período da infância. Ou seja, um grito de socorro para um trauma ocorrido.
A história da histeria reflete a maneira como a sociedade, ao longo dos tempos, tratou e ainda trata as mulheres e suas emoções, criando modelos de existência e imagens morais da mulher e dos papéis femininos, construídos por homens de saber, pelas instituições dirigidas por eles, para o tratamento delas, e pela aprovação e consentimento público do que eles afirmam como verdade.


Comentários